sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Na Escrivaninha: Duas Porções de Amarelo - Crônica


Amanheceu um dia frio e sem cor perdido entre os dias insuportavelmente ensolarados daquela semana. Logo cedo, antes da primeira missa do dia terminar, ela montou a barraca de flores. A florista descarregou os vasos de crisântemos e begônias, cravos e rosas. Em poucos minutos, as cores preencheram a barraca. Havia flores de quase todas as cores, mas as amarelas eram claramente mais numerosas, talvez por predileção da própria florista.

Então, quando o sol se encorajou e a manhã esquentou um pouco, as pessoas começaram a chegar. Algumas vinham da igreja que ficava ali pertinho, outras saíram de casa especialmente para irem ao cemitério. A florista  tentava ser o mais acolhedora que conseguia, com isso em mente, ela não sorria para a pequena multidão que se aglomerava, ela gostava de sorrir para cada um, cada pessoa recebia seu próprio sorriso, mesmo aquelas que já traziam seu vaso de flores e não pretendiam comprar nada. No instante em que as pessoas demonstravam interesse em alguma flor, a florista já sabia exatamente qual vaso elas precisavam levar. Infelizmente, em uma grande parte das vezes, o que precisamos não é o que queremos. Por isso, nem todos os clientes concordavam com a indicação e escolhiam alguma outra flor, certamente por não saber ao certo o que as flores significavam. Todas aquelas cores e pétalas e perfumes quase conseguiam disfarçar o motivo de todo aquele alvoroço atrás dos vasos.

Duas mulheres quase brigaram pelo último crisântemo laranja e um homem implorou por um vaso de margaridas que não havia. Por fim, não sobrou nenhuma pétala, nenhuma cor. Naquele dia abençoado, a florista conseguiu vender tudo! Ela olhou satisfeita para a barraca vazia e contou o dinheiro que havia ganhado. Quando começou a se aprontar para voltar para casa, lembrou-se de algo. Como ela poderia ter esquecido? Não havia mais nenhuma flor. Mas ainda assim, ela entrou pelos portões, caminhou pelas passarelas meio malfeitas e chegou a dois túmulos empoeirados que, aparentemente, estavam esquecidos. Então ela foi até o ostensivo vaso de crisântemos amarelos do túmulo vizinho, que certamente tinha sido comprado de sua barraca, e roubou duas pequenas florzinhas. Ela segurou as duas pequenas porções de amarelo nas mãos por um instante que durou meia vida não vivida e outra vida quase inteira. Cabisbaixa, a florista se aproximou dos túmulos antes esquecidos e colocou uma  florzinha no túmulo de seu querido marido e outra no de seu amado filho.
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4 comentários:

  1. Tocante e agradável, com aquele ar bem brasileiro. O tipo de crônica perfeita pra ler numa tarde com alguns chuviscos. Percebi que já tinha lido e amei mais uma vez ��

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    1. Eu reescrevi e aperfeiçoei uma crônica mais antiga para postar aqui. Fico muito feliz por você ter gostado (de novo).

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  2. Sutileza e precisão em proporções certeiras. Belo texto!

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