quinta-feira, 26 de julho de 2018

Nas Páginas: Coração e Alma - Maylis de Kerangal



Meu segundo livro da editora Rádio Londres (o outro livro da editora que li foi Stoner) e outra leitura incrível. Hesitei para ler esse livro porque o tema "transplante" é muito delicado para mim e eu tinha um pouco de medo de me identificar demais com aquela história. No entanto, acabei superando essa insegurança e decidi que era hora de encarar essa leitura de frente.

Em Coração e Alma, acompanhamos um transplante de coração. Vemos um pequeno recorte de uma intricada série de eventos que se encontram nesse transplante. Esses eventos se desenvolvem a partir de 2 pólos. O primeiro e, talvez, o que inicialmente é o mais consciente de tudo o que está e irá acontecer é o do receptor do órgão, no caso desse livro, do coração. No outro pólo, está o doador, nesse caso Simon Limbres. Esses dois pontos, essas duas pessoas, essas duas vidas desconhecidas entre si encontram-se de forma decisiva no transplante. A história de Coração e Alma se demora mais na perspectiva do doador e aos poucos vai revelando partes da vida das pessoas que te alguma forma estão envolvidas no transplante. Os pais de Simon, a namorada, a irmã, funcionários do hospital, como o médico que constatou a morte cerebral de Simon, a enfermeira plantonista, o enfermeiro do setor de transplantes do hospital, o cirurgião que faz a capitação do órgão e tantos outros. São "tipos" que erroneamente pode-se imaginar que não possuem uma história, que são apenas as suas funções, mas que são sim pessoas, possuem vidas, medos e inseguranças. Tudo isso, todas essas histórias, parecem convergir para aquele momento em que um coração que deixou de bater no peito de Simon, recomeça a bater no peito de Claire Méjan.

A história delineia muito cuidadosamente a atmosfera caótica de sentimentos que assola os pais de Simon. A angustia que eles sentem parece escorrer pelas páginas em diversas situações. Mas, ao mesmo tempo em que as notícias desesperadoras parecem desnorteá-los, vemos como seus sentimentos, depois de refletir e de encontrar alguma compreensão no caos, vão se organizando. A dor não diminui, mas começa a permitir que outros sentimentos também façam-se ouvir. Daí, desse pouco de lucidez em meio a tanta dor, é que surge a decisão que faz com que todo o sistema por trás de um transplante comece a funcionar.

Ao mesmo tempo que acompanhamos o transplante por essa perspectiva emocional e psicológica, temos também alguns momentos em que nos são mostrados detalhes técnicos do processo. Um momento marcante em que isso aparece é sobre o conceito de morte. Acreditava-se que eram as batidas do coração que ditavam o ritmo da vida e que, enquanto ele estivesse batendo, a vida existia. Mas, hoje, sabe-se que não é mais o coração quem dita a existência da vida, mas o cérebro. "O que atesta a morte não é mais o momento em que o coração para, e sim quando cessam as funções cerebrais." Temos também detalhes interessantes sobre a capitação dos órgãos, a atuação de cada um dos profissionais envolvidos na cirurgia, a preocupação com a qualidade dos órgãos e da própria capitação e o respeito com o corpo do doador que será devolvido à família. Talvez esses detalhes possam parecer um pouco brutais ou exagerados, mas  achei muito importantes para a desmistificação de um processo tão desconhecido por muitas pessoas.

Eu não poderia deixar de mencionar o quanto me identifiquei com os dilemas da receptora do coração. Quase todos os sentimentos que aparecem no capítulo dedicado a ela me pareceram muito verossímeis e fizeram com que eu me lembrasse de coisas que eu mesmo senti. Aquela espera aparentemente eterna, uma sensação de que sua vida foi pausada e tudo o que lhe resta é sentar e esperar e esperar e esperar. Teve um momento dessa espera em que Claire diz não suportar mais a opinião dos saudáveis sobre os doentes. E eu compartilho muito desse sentimento. Essa limitação da liberdade, como se qualquer um se sentisse no direito de decidir o que é melhor para um doente.

Coração e Alma é um livro necessário. Uma história real que é capaz de nos tornar mais humanos e mais gentis, que nos ajuda a enxergar a vida e a morte de formas mais simples, mais realistas. Essa história também nos ajuda a perceber as pessoas como indivíduos, como peças conscientes e fundamentais de um grande processo. Coração e Alma nos faz enxergar como nossas decisões se desdobram e que nós somos os responsáveis por elas. Nós decidimos, a decisão pode parecer difícil, mas ela também é cheia de simplicidade e gentileza. Coração e Alma nos faz enxergar a diferença que um pequeno momento pode fazer na vida de alguém, na vida de alguém que a gente nem mesmo conhece. Um pequeno momento de nossos vidas pode valer uma vida inteira de outra pessoa. Coração e Alma é capaz de abrir nossos olhos.




Título: Coração e Alma
Título Original: Réparer les Vivants
Autor: Maylis de Kerangal
Tradução: Maria de Fátima Oliva do Coutto
Editora: Rádio Londres
Páginas: 235
Ano: 2014

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