Meu segundo livro da editora
Rádio Londres (o outro livro da editora que li foi Stoner) e outra leitura incrível. Hesitei para ler esse livro porque o
tema "transplante" é muito delicado para mim e eu tinha um pouco de medo de me
identificar demais com aquela história. No entanto, acabei superando essa
insegurança e decidi que era hora de encarar essa leitura de frente.
Em Coração e Alma, acompanhamos
um transplante de coração. Vemos um pequeno recorte de uma intricada série de
eventos que se encontram nesse transplante. Esses eventos se desenvolvem a
partir de 2 pólos. O primeiro e, talvez, o que inicialmente é o mais consciente
de tudo o que está e irá acontecer é o do receptor do órgão, no caso desse livro,
do coração. No outro pólo, está o doador, nesse caso Simon Limbres. Esses dois
pontos, essas duas pessoas, essas duas vidas desconhecidas entre si encontram-se
de forma decisiva no transplante. A história de Coração e Alma se demora mais
na perspectiva do doador e aos poucos vai revelando partes da vida das pessoas
que te alguma forma estão envolvidas no transplante. Os pais de Simon, a
namorada, a irmã, funcionários do hospital, como o médico que constatou a
morte cerebral de Simon, a enfermeira plantonista, o enfermeiro do setor de transplantes
do hospital, o cirurgião que faz a capitação do órgão e tantos outros. São
"tipos" que erroneamente pode-se imaginar que não possuem uma
história, que são apenas as suas funções, mas que são sim pessoas, possuem
vidas, medos e inseguranças. Tudo isso, todas essas histórias, parecem convergir
para aquele momento em que um coração que deixou de bater no peito de Simon,
recomeça a bater no peito de Claire Méjan.
A história delineia muito cuidadosamente
a atmosfera caótica de sentimentos que assola os pais de Simon. A angustia que
eles sentem parece escorrer pelas páginas em diversas situações. Mas, ao mesmo
tempo em que as notícias desesperadoras parecem desnorteá-los, vemos como seus sentimentos,
depois de refletir e de encontrar alguma compreensão no caos, vão se
organizando. A dor não diminui, mas começa a permitir que outros sentimentos também
façam-se ouvir. Daí, desse pouco de lucidez em meio a tanta dor, é que surge a
decisão que faz com que todo o sistema por trás de um transplante comece a
funcionar.
Ao mesmo tempo que acompanhamos o
transplante por essa perspectiva emocional e psicológica, temos também alguns
momentos em que nos são mostrados detalhes técnicos do processo. Um momento
marcante em que isso aparece é sobre o conceito de morte. Acreditava-se que
eram as batidas do coração que ditavam o ritmo da vida e que, enquanto ele
estivesse batendo, a vida existia. Mas, hoje, sabe-se que não é mais o coração
quem dita a existência da vida, mas o cérebro. "O que atesta a morte não é
mais o momento em que o coração para, e sim quando cessam as funções
cerebrais." Temos também detalhes interessantes sobre a capitação dos
órgãos, a atuação de cada um dos profissionais envolvidos na cirurgia, a
preocupação com a qualidade dos órgãos e da própria capitação e o respeito com o corpo
do doador que será devolvido à família. Talvez esses detalhes possam parecer um
pouco brutais ou exagerados, mas achei
muito importantes para a desmistificação de um processo tão desconhecido por
muitas pessoas.
Eu não poderia deixar de
mencionar o quanto me identifiquei com os dilemas da receptora do coração. Quase
todos os sentimentos que aparecem no capítulo dedicado a ela me pareceram muito
verossímeis e fizeram com que eu me lembrasse de coisas que eu mesmo senti.
Aquela espera aparentemente eterna, uma sensação de que sua vida foi pausada e
tudo o que lhe resta é sentar e esperar e esperar e esperar. Teve um momento
dessa espera em que Claire diz não suportar mais a opinião dos saudáveis sobre
os doentes. E eu compartilho muito desse sentimento. Essa limitação da
liberdade, como se qualquer um se sentisse no direito de decidir o que é melhor
para um doente.
Coração e Alma é um livro
necessário. Uma história real que é capaz de nos tornar mais humanos e mais
gentis, que nos ajuda a enxergar a vida e a morte de formas mais simples,
mais realistas. Essa história também nos ajuda a perceber as pessoas como
indivíduos, como peças conscientes e fundamentais de um grande processo.
Coração e Alma nos faz enxergar como nossas decisões se desdobram e que nós
somos os responsáveis por elas. Nós decidimos, a decisão pode parecer difícil, mas
ela também é cheia de simplicidade e gentileza. Coração e Alma nos faz enxergar
a diferença que um pequeno momento pode fazer na vida de alguém, na vida de
alguém que a gente nem mesmo conhece. Um pequeno momento de nossos vidas pode valer
uma vida inteira de outra pessoa. Coração e Alma é capaz de abrir nossos olhos.
Título: Coração e Alma
Título Original: Réparer les Vivants
Autor: Maylis de Kerangal
Tradução: Maria de Fátima Oliva do Coutto
Editora: Rádio Londres
Páginas: 235
Ano: 2014
Título Original: Réparer les Vivants
Autor: Maylis de Kerangal
Tradução: Maria de Fátima Oliva do Coutto
Editora: Rádio Londres
Páginas: 235
Ano: 2014
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