sábado, 17 de fevereiro de 2018

Nas Páginas: Lembra do Realismo Fantástico?


Acho que ainda não admiti neste blog que uma das minhas grandes paixões literárias são histórias de realismo fantástico (realismo mágico). Ainda não fiz muitas leituras de livros vinculados a esse movimento literário, muito menos sou um estudioso ou conhecedor profundo dele (bem que seria uma ótima ideia me tornar um, né?) e não tenho nenhuma pretensão acadêmica com esse texto. Sou apenas um entusiasmado apreciador de obras do realismo fantástico e quero contar um pouco da minha história com ele e da minha redescoberta de alguns de seus representantes mais ilustres. O realismo fantástico é um movimento literário latino-americano que teve seu auge nas décadas de 60 e 70. Sua principal característica é a inclusão de elementos mágicos e estranhos no cotidiano dos personagens e esses, por sua vez, lidam com o fantástico de forma natural, como se aquilo fosse algo corriqueiro e comum. Além dessa, há outras características que ajudam a configurar o movimento, como a ausência de explicações sobre os eventos fantasiosos; uma espécie distorção na percepção do tempo, como se o presente sempre se repetisse e não fosse capaz de se afastar do passado; o fato de os elementos sobrenaturais, apesar de não serem explicados, serem verossímeis e serem coerentes, segundo o universo da história. Tudo isso parece incrível!? E é incrível mesmo. Tenho lembranças muito boas das leituras dos grandes representantes do realismo fantástico e também de outros escritores que, mesmo não sendo ligados diretamente ao realismo fantásticos, acabaram por ter algumas de suas obras influenciadas por ele. Entre esses autores, acredito que estão  alguns pelos quais tenho um carinho especial.


Um dos autores que estão no âmago do realismo fantástico e que eu admiro muito é  Gabriel García Márquez. Ele é o mestre das histórias surpreendentes, dos personagens pitorescos e dos lugares insólitos. Apesar de não serem suas obras de maior reconhecimento e importância (a obra mais importante é Cem Anos de Solidão, que preciso reler e recuperar meu exemplar que não me devolveram), tenho um afeto especial por Crônica de Uma Morte Anunciada (que emprestei e também não me devolveram), com o infeliz Santiago Nasar que foi nos apresentado já defunto, e por Do Amor e Outros Demônios (lido em dezembro de 2009), com Sierva María e seu destino sinistro. Foram leituras marcantes que me apresentaram ao García Márquez e me fizeram correr atrás de outros livros do autor (não poderia esquecer da Cândida Erendira e de seus incríveis infortúnios com sua avó sem alma).


Há também o argentino Jorge Luis Borges de quem li apenas um livro, Ficções, que já foi o bastante para me impressionar. Li enquanto fazia meu estágio curricular e ele foi meu companheiro quando sobrava  algum tempo livre. Eu já havia ouvido falar muito do Borges (ele era frequentemente citado em minhas leituras teóricas na faculdade) e sabia que ele era um intelectual e amante incontestável dos livros, um grande pensador e crítico, além de um escritor sensacional. Ficções é um livro de contos e  dele fazem parte histórias enigmáticas. Entre elas está o conto que, talvez, seja sua obra mais lembrada, A Biblioteca de Babel, que consiste de uma biblioteca-universo de todos os livros e histórias. Nos contos, Borges faz uso de uma inventividade incrível, de narrativas provocantes e enredos complexos que, mesmo tratando de assuntos variados, conservam seu teor filosófico e reflexões vigorosas.

Além desses dois autores incríveis e que estão entre os principais representantes do realismo fantástico, gostaria de falar um pouco sobre algumas obras de dois autores que acredita-se terem sido influenciadas pelas características do realismo mágico. São as obras do português José Saramago e do italiano Ítalo Calvino.


Primeiramente, José Saramago e seu Ensaio Sobre A Cegueira. Nele, uma cegueira misteriosa e inexplicável assola a todos, exceto a mulher de um médico. Essa cegueira branca e repentina faz com que muitos mergulhem na loucura de si mesmos e acabem por se mostrar animalescos diante de uma sociedade que não é mais capaz de enxergá-los. Em meio ao caos cego, há a mulher do médico, que precisa sobreviver e manter-se lúcida. Enxergar em um mundo de cegos é uma dádiva ou um fardo impossível de ser carregado? A leitura de Ensaio Sobre a Cegueira me marcou, chocou e encantou intensamente. Graças à abençoada ação do destino,  foi solicitado que eu lesse o livro para um trabalho da faculdade sobre incentivo da leitura de obras escritas em Língua Portuguesa. Não me recordo de um leitura da faculdade que tenha me surpreendido tanto. Enquanto estava lendo, todos os dias contava um pequeno resumo do que havia lido para minha mãe e ela acompanhou a história comigo. Embora não tenha o hábito de ler (e suas vistas também não ajudem), minha mãe pegava o livro em meu criado-mudo, enquanto eu não estava em casa, e ficava pescando trechos da história, tamanha sua curiosidade para saber o que aconteceria em seguida.


Em segundo, Ítalo Calvino. Conheci Ítalo na faculdade com o incompleto Seis Propostas Para O Próximo Milênio. Mas me apaixonei por ele de verdade quando li o Cavaleiro Inexistente (lido em maio de 2011), que, apesar de  se assemelhar com um romance de cavalaria, há (ou não) o honrado e inusitado cavaleiro Agilulfo que não existe e isso é considerado algo normal, tipicamente como acontece com elementos sobrenaturais em histórias do realismo fantástico. Em alguns momentos, há reflexões sobre as implicações dessa inexistência, mas sua improbabilidade não é questionada. O livro possui um ar cômico e o impossível é um companheiro constante durante a leitura. Depois do Cavaleiro Inexiste, li O Visconde Partido Ao Meio (em abril de 2011). No primeiro livro, o protagonista não existe e, no segundo, só há metade dele. O visconde Metardo fora atingido por um tiro de canhão. Os danos foram tão terríveis que, apesar de continuar vivo, restou-lhe apenas metade do corpo. Metardo tenta retomar sua vida, volta pra casa, reencontra seus antigos conhecidos, mas sua personalidade também parece ter sido afetada pelo fatídico tiro.















Há muitos outros autores vinculados ao realismo fantástico que eu gostaria de ler, como Julio Cortázar (de quem, inclusive, já tenho alguns livros), Isabel Allende (A Casa dos Espíritos está no meu projeto de leituras para 2018) e Mário Vargas Llosa (que já ignorei tantas vezes e me arrependo). Entretanto, há dois escritores brasileiros que escreveram realismo fantástico que eu negligenciara involuntariamente, talvez, por não serem muito populares, José J. Veiga e Murilo Rubião. Na faculdade, eu não estudei muito sobre eles, apenas me lembro de o professor de Literatura Brasileira mencioná-los, mas eu só sabia que eles existiam e que escreviam realismo fantástico. Eu já havia até comprado um livro de cada um deles em um feirão de livros que teve em minha cidade, o romance Aquele Mundo de Vasabarros do José J. Veiga, em uma edição antiguíssima de 1985 e A Casa do Girassol Vermelho e outros contos, do Murilo Rubião, em uma edição da Companhia das Letras de 2006. No entanto, eles estavam perdidos na parte dos livros de menos prestígio da minha estante, estavam lá, quase esquecidos para sempre.


Recentemente, passei em uma livraria onde há uma grande banca de livros, todos amontoados, mas com preços bem em conta. É um caos, tudo misturado e você tem que procurar os livros na marra, não vou reclamar, porque até gosto desse passatempo. Estava feliz separando alguns livros, quando me deparei com uma edição capa-dura do livro Sombras de Reis Barbudos, do José J. Veiga. Uma edição linda, capa verde com uma espécie de labirinto. No momento em que botei os olhos naquele livro, ocorreu-me que eu precisava ler José J. Veiga urgentemente. Peguei o livro e comprei. Aquilo me lançou num vórtice de pesquisas sobre os livros do autor na internet e elas me levaram ao Murilo Rubião e depois me levaram à parte menos prestigiada da minha estante, onde encontrei os livros dos dois. Pronto! Estava decidido, eu leria Sombras de Reis Barbudos em breve e a leitura também seria uma forma de fazer as pazes com a literatura nacional (brigamos quando não selecionei nenhum livro nacional para o projeto de leituras de 2018).


Então comecei a ler Sombras de Reis Barbudos, o livro que me reconectou ao realismo mágico. José J. Veiga  é um autor muito reconhecido que eu praticamente desconhecia, mas isso iria mudar. Ele nascera em Goiás, em 1915 e tinha origens rurais, fato que influenciaria bastante sua obra. Começou na literatura aos 45 anos ao publicar sua primeira coletânea de contos intitulada Os Cavalinhos de Platiplanto, que eu quero muito ler e que muitas pessoas consideram ser sua obra mais importante. Descobri que a Companhia das Letras começou a republicar suas obras em edições caprichadas, mas só encontrei 4 livros dessas novas edições publicados e foi exatamente um deles que encontrei perdido na livraria da minha cidade.


Sobre a leitura do Sombras de Reis Barbudos digo que me fascinou já nas primeiras páginas. Uma narrativa fluida, simples e certeira, com personagens intrigantes que poderiam ser aquele senhor estranho que é vizinho da sua avó ou sua professora excêntrica de Literatura Inglesa. Logo no início, já foi possível perceber o quanto o mundo real está traduzido, refletido e representado pelos eventos improváveis que surgem ao longo da história, pelo comportamento incomum dos personagens ou pela estranheza daquele microuniverso. Em relação ao enredo, o livro acompanha as memórias do jovem Lucas. Ele começa a escrevê-las a partir da chegada de seu tio Baltazar à cidade de Taitara e ressalta como isso modificou completamente a vida de sua cidade. Baltazar foi o fundador da Companhia Melhoramentos e ela seria a causadora de grande parte das desventuras narradas na história. Ao ler, temos a sensação de que aquilo tudo é possível e verossímil, que é apenas uma porção de recortes de uma vida qualquer, mas, ao mesmo tempo, temos um sentimento constante de irrealidade, como um sonho que parece muito real, mas há algum segredo, em algum lugar, que não nos deixa esquecer que aquilo é apenas um sonho. Outra característica que me surpreendeu foi a narrativa em primeira pessoa sob a perspectiva de um adolescente. Esse olhar atribui um tom com alguma ingenuidade à história e permite enxergar os acontecimento através de um lente de simplicidade, praticidade e até um pouco inconsequente. Isso garante certa leveza aos acontecimentos injustos e cruéis.


Certamente, em breve publicarei uma resenha completa sobre Sombras de Reis Barbudos. Entretanto, já adianto que fiquei deslumbrado. Com toda certeza, Veiga entrou para o meu grupo de autores preferidos e ainda lerei muitas de suas obras (seria muito ambicioso querer ler a obra completa?). A partir do sucesso total do meu retorno ao realismo fantástico, a leitura de Murilo Rubião tornou-se inevitável. Embora sejam poucos, os contos de Rubião são considerados os maiores representantes do realismo fantástico no Brasil e influenciaram o próprio José J. Veiga. Rubião era mineiro, formou-se em direito, foi jornalista e depois politico. Era perfeccionista e reescrevia seus contos incansavelmente até que estivesse satisfeito. Eu tenho um dos livros com alguns de seus contos, mas existe uma edição da Companhia das Letras com sua obra completa e já estou de olho nela. Acredito que, em breve, experimentarei algo do Murilo Rubião.

Esse foi um panorama de algumas das minhas experiências com o realismo fantástico. Há muitas outras histórias que eu poderia contar, mas elas surgirão em outra oportunidade. Estou certo que ainda há muito do realismo fantástico pra ler, estudar e compreender. Espero que eu possa trazer resenhas e comentários mais completos sobre os livros que citei aqui e que eu também possa realizar as leituras dos autores mencionados que ainda não li. Gostaria de convencer a todas as pessoas do mundo que elas precisam conhecer o realismo fantástico e ajudá-las a perceber que por mais que as histórias sejam esquisitas, pitorescas e sobrenaturais não há história que seja mais estranha e inexplicável do que o nosso próprio mundo.



Livros citados

Cem Anos de Solidão - Gabriel García Márquez
Crônica de Uma Morte Anunciada - Gabriel García Márquez
Do Amor e Outros Demônios - Gabriel García Márquez
A Incrível e Triste História da Cândida Erendira e Sua Avó Desalmada - Gabriel García Marquez
Ficções - Jorge Luis Borges
Ensaio Sobre A Cegueira - José Saramago
O Cavaleiro Invisível - Ítalo Calvino
O Visconde Partido Ao Meio - Ítalo Calvino
Aquele Mundo de Vasabarros - José J. Veiga
A Casa do Girassol Vermelho e outros contos - Murilo Rubião
Sombras de Reis Barbudos - José J. Veiga


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3 comentários:

  1. Parabéns! AMEI esse novo espaço no blog. Você está mandando muito bem. <3 <3

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  2. Excelente caracterização do realismo fantástico. Tenho que voltar a te presentear com livros desse gênero <3

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