domingo, 11 de fevereiro de 2018

Nas páginas: Tudo Que Deixamos Para Trás - Maja Lunde


Em algum mês perdido de 2017 (na verdade, em julho), eu li um livro que envolvia abelhas, era o livro A Vida Secreta das Abelhas, da escritora Sue Monk Kidd, publicado pela editora Paralela. Foi meu primeiro contato, por meio da literatura, com o universo das abelhas e da apicultura. Nesse livro,  embora não fossem o foco da história, a relação dos personagens com as abelhas era muito próxima, quase sobrenatural, e isso me encantou. Descobri o quanto a vida, a colmeia, a organização das abelhas fascina os homens. Com essa bagagem, eu me deparei com o livro publicado pela editora Morro Branco, Tudo Que Deixamos Para Trás, escrito pela norueguesa Maja Lunde, que também envolvia abelhas, mas, dessa vez, elas eram a razão e a força-motriz da história.

A história do livro é contada por meio de três narrativas sem ligação direta, mas unidas pelas abelhas. Em cada uma dessas linhas narrativas, temos um protagonista diferente, uma época diferente e um lugar diferente. A primeira protagonista é Tao, uma chinesa de 2098. Nessa narrativa, somos apresentados à faceta distópica da história. Tao vive em uma época em que os insetos polinizadores foram extintos, desapareceram ou morreram, e isso impactou terrivelmente a toda a sociedade. São inúmeros os prejuízos que esse colapso submeteu a todos, as economias definharam, a agropecuária e toda a indústria alimentícia, as fábricas, as famílias, todos os setores da sociedade sofreram de forma assustadora. O mundo enfrentou uma grande catástrofe e ainda luta para se erguer de uma miséria aterradora. Diante dessa situação, a China desenvolveu um sistema rígido de controle da população para tentar remediar, mesmo que parcialmente, o quase apocalipse em que o país mergulhou. Muitas pessoas são submetidas ao trabalho duro na minuciosa e penosa polinização manual dos pomares, substituindo as abelhas. Tao é uma dessas trabalhadoras. Ela é casada com Kuan, que também trabalha na polinização manual, e tem um filho pequeno de 3 anos, Wei-Wen. Tao, apesar de ser parte daquele sistema, luta para fazer com que seu filho tenha melhores oportunidades do que as que ela mesma teve. Ela tem pequenas, porém significativas e persistentes, atitudes para proteger Wei-Wen da desesperança, da alienação e da desumanização que aos poucos toma a todos. A jornada de Tao começa quando um mal súbito acomete Wei-wen e um turbilhão de sentimentos, impotência, culpa e  frustração, acompanham-na na busca pela compreensão do que houve com seu filho.

A segunda linha narrativa tem por protagonista William, um britânico de 1852. Nessa época,  a apicultura moderna ainda está em desenvolvimento e não há sinal algum de que, no futuro, as abelhas seriam extintas. William é um biólogo, entusiasta dos estudos acerca das abelhas e da apicultura, no entanto, ele está passando por uma fase difícil. Depois de uma grande decepção com o pesquisador de quem era auxiliar, William caiu em uma forte depressão e ficou de cama por meses. O dilema de William começa quando ele, ainda na cama, começa a refletir sobre sua família numerosa e seu apreço pela pesquisa, pelos estudos. Incentivado pelo gesto de alguém de sua família e impulsionado pelo desejo de provar para si mesmo e para o mundo, sobretudo para seu antigo mestre, que é um grande pesquisador, William pretende desenvolver um novo tipo de colmeia e, por conseguinte, uma nova forma de lidar com as abelhas que possa trazer algum tipo de prestígio para sua família.


Na terceira narrativa, acompanhamos George, um apicultor estadunidense de 2007. É essa vertente da história que mais se aproxima da nossa realidade. George é um homem conservador, trabalhador que lida há muitos anos com as abelhas. A apicultura é uma herança de família. Assim, George espera que seu filho Tom ame e deseje ser apicultor. Daí, surge o primeiro conflito dessa linha narrativa, George espelha suas vontades em Tom, ele espera que o filho atenda a suas expectativas e queira o que ele julga certo, seguro e necessário. Entretanto, Tom naturalmente não é um reflexo dos desejos de seu pai e seus sonhos e prioridades vão destoar daquilo que George espera. O segundo conflito é o início da desordem do colapso das colônias que culminaria no desaparecimento de todos os insetos polinizadores do mundo. Esse evento catastrófico corrói a esperança da família de George e traz graves consequências para todo o mundo e, a longo prazo, transformaria o mundo naquilo que conhecemos na linha narrativa da Tao. Apesar da grande dificuldade que teve que enfrentar, o desaparecimento das abelhas faz com que George repense alguns de seus valorizes e modifique sua relação com a natureza e, principalmente, com seu filho.


Percebemos o desenvolvimento de várias questões familiares ao longo do livro. Temos uma mãe que tenta a todo custo preservar a felicidade de seu filho, que é capaz de qualquer coisa para garantir a segurança dele; temos um pai que abriu mão de sua carreira para cuidar da família e que, ainda assim, não teve nem mesmo a gratidão e o afeto de seu filho primogênito, de quem esperava algum tipo de retribuição; e temos, por fim, um pai cabeça-dura que tem suas expectativas frustradas quando as vontades de seu filho não correspondem ao que ele esperava. Essas questões delicadas são tratadas com muito cuidado por Lunde. Ela soube dosar muito bem o misto de  amor, resignação,  dever e sacrifício em que se pautam cada uma dessas relações. É no desenvolvimento das questões familiares que os personagens brilham, essas questões aprofundam suas personalidades e tornam verossímeis suas atitudes. Além de tratar dos conflitos comuns, o livro atribui grande importância à família e a apresenta como um lugar de diálogo e doação mútua, em que os problemas são superados e as dificuldades, mesmo aquelas graves, como a escassez de alimentos e outros recursos essenciais para a sobrevivência ou a depressão, podem ser vencidos.

Um ponto que eu gostaria de destacar é a questão ambiental e o alerta que o livro traz. Embora a China distópica em que se passa a história de Tao possa parecer distante de nossa realidade, já observamos sinais de que as populações de insetos polinizadores estão diminuindo, vemos o desequilíbrio dos ecossistemas, a poluição absurda e o uso desenfreado de agrotóxicos. Talvez, as abelhas não desapareçam da forma catastrófica e global como acontece no livro, mas já  notamos claramente as implicações negativas da exploração inconsciente que o homem faz da natureza. Tudo Que Deixamos Para Trás nos faz um alerta para refletirmos sobre o futuro que queremos para nós, para a humanidade, e no quanto as atitudes de hoje  influenciarão na qualidade do nosso próprio futuro. Esse futuro irá se definir hoje, agora. As reflexões precisam apontar para atitudes, e as mudanças precisam acontecer. Essas atitudes, as de priorizar uma relação mais consciente, respeitosa, harmônica com a natureza, são absolutamente urgentes.

Tudo Que Deixamos Para Trás é o segundo livro da editora Morro Branco que leio (o primeiro foi A Ilusão do Tempo, do escritor islandês Andri Snaer Magnason, em 2017). Assim como no primeiro livro, a editora Morro Branco fez um ótimo trabalho e conseguiu de uma vez por todas atrair minha atenção para suas publicações. Recomendo Tudo Que Deixamos Para Trás fortemente. A história lida com vários assuntos interessantes e que são capazes de alcançar todo tipo de leitor, desde os que gostam de distopia até aqueles que preferem os dramas. Seus personagens são cativantes e com toda certeza você vai se emocionar com seus momentos de felicidade, se envolver com seus dilemas, questionar suas atitudes, experimentar um pouco de suas angustias e inseguranças. Essa história de abelhas e de pessoas, de pais, mães e filhos merece e precisa ser lida.


Título: Tudo Que Deixamos Para Trás
Título Original: Bienes Historie
Autora: Maja Lunde
País: Noruega
Tradução: Krintin Lie Gabrrubo
Editora: Morro Branco
Páginas: 475
Ano: 2016









Compartilhe:

0 comentários:

Postar um comentário