sábado, 24 de fevereiro de 2018

Na Escrivaninha: Colina - Conto


COLINA

- FILLIPE GONTIJO EVANGELISTA -



Passaram a semana procurando e num anúncio minúsculo, num jornal desconhecido, acharam uma casa. Ficava no alto de uma colina, na margem de um bosque e de um riacho barulhento. Marcaram uma visita, e uma senhora também minúscula apontou-lhes o alto da colina. Foram sozinhos e no instante em que pisaram naquele lugar, sentiram-se mais perto do céu, perto de um lugar só deles. Casaram-se, acertaram as coisas e se mudaram na primeira oportunidade. Já tinham um filho de 3 anos e o segundo estava chegando e, talvez, fosse uma menina. Nessa época, apenas o pai trabalhava e todos os dias, em seu carro barulhento, rodeava a colina por sua única estrada sonâmbula. Quando anoitecia, voltava o mais rápido que podia e quando começava a subir, todos lá em cima já sabiam que estava chegando.

A irmã mais nova nasceu e não demorou a crescer. Com a ajuda de uma parceira, foi mais fácil explorar o bosque e o fundo do riacho, as cavernas da colina e o pântano do lado oeste. Eram inseparáveis, passavam o tempo todo brincando e a cada dia descobriam um pouco mais daquele mundo enorme, mas também de si mesmos. Quando anoitecia, voltavam para casa torcendo para que o amanhã chegasse logo e pudessem aventurar-se outra vez. Os pais se deliciavam com toda aquela energia e passavam horas ouvindo as histórias exageradas de como desvendavam o bosque sombrio e o riacho-mar sem fundo. Um dia apareciam as misteriosas árvores cantoras ou os pássaros de vidro, em outro, os peixes falantes ou o dragão adormecido. A cada noite que se reuniam para jantar, o bosque e tudo o que havia naquela colina tornavam-se maiores, feito um lugar infinito. Não havia limites para as histórias e nem para a coragem daqueles exploradores.

Uma vez a mãe decidiu passar a tarde na cidade e depois que resolvesse tudo, esperaria o pai para voltarem juntos. Ela traria sanduíches para o jantar, então, os irmãos foram encarregados de ajeitarem a mesa para jantarem todos juntos. Esperaram pelo barulho engasgado do motor esforçando-se para subir, mas não ouviram nada. Os dois irmãos imaginaram que, talvez, o carro tivesse estragado, o que ocorria uma vez ou outra. Mas, também na próxima hora nenhum barulho veio lá de baixo. Esperaram, até que o silêncio os fez adormecer desapontados e, naquela noite, seus pais não voltaram.

Os dois irmãos passaram muito tempo dentro da casa, sem terem força para nada. Olhavam esperançosos pelas janelas e seus mundos se resumiram àquela espera. Apenas esperavam e esperavam, juntos, mas sozinhos. Não possuíam outra vontade, senão a de abraçar seus pais e aquilo os consumia por completo. Nem mesmo conversavam, seus olhos não se desviavam da porta. Rezavam. Foi um tempo de uma mudez profunda e depois dela, nunca mais seriam os mesmos. Desligaram-se do mundo. Tornaram-se estátuas de desejo impossível que esperavam simplesmente.

Em um dia qualquer, uma batida na porta fez com que se entreolhassem. Hesitaram, mas a batida insistiu. Não tinham força ou ânimo para atenderem, no entanto, relutantes, levantaram-se do sofá vagarosamente e foram ver o que queriam. Antes de chegarem à porta, mais três batidas. A pequena Raquel abriu e deparou-se com um homem elegante e que se mostrou muito educado. Ele os cumprimentou tirando o chapéu com uma pena verde e curvando-se pomposamente. Logo perguntou se poderia entrar, com um sotaque vibrante. Depois do consentimento receoso dos garotos, entrou e a conversa se estendeu por toda a tarde. Desde o primeiro momento, Raquel viu algo de familiar nele, como se o conhecesse de outros tempos, mas não tinha certeza, poderia estar enganada, por isso manteve-se quieta. O homem lhes explicou que havia vindo buscar ajuda e que seguira o rastro dos feitos daqueles dois. Não foi fácil encontrá-los, porque havia 77 anos que ninguém ouvia falar deles. Mas, como ninguém mais seria capaz de ajudá-lo, ele insistiu e, por acaso, uma senhora lhe disse para procurar naquela casinha e, por uma incrível sorte, lá estavam eles. Ele explicou sobre o engano que cometeram em pensar que ele era um grande aventureiro e como ele se deixou levar por essa história. Contou sobre como todos acreditaram nas histórias que ele escrevia sobre um "eu" que, na verdade, não existia, e como ele se apaixonou pela filha do rei. Esclareceu como o rei havia solicitado que ele protegesse o reino de um dragão gigante, que há anos devorava a todos que ousavam cruzar o bosque. Quando disse a palavra "bosque", ele fez uma pausa temerosa. "Preciso da ajuda de vocês para derrotar o dragão."

Os dois irmãos se entreolharam mais uma vez e sorriram. Naquele mesmo dia, partiram junto com o Escritor. Gui, o irmão mais velho, levava seu escudo redondo e a pequena Raquel um anel mágico. Ela continuava com aquela sensação estranha. "Já vi esse homem", mas tratava de guardar aquilo para si mesma. Seguiram o Escritor até a margem do bosque. Enquanto caminhavam, esqueceram por algum tempo de sua espera e sua tristeza pareceram diminuir ou se esconder. Já estava escurecendo. O sol se escondia e uma lua exuberante emergia da noite. Alguns vaga-lumes ziguezagueavam entre as árvores e era possível ouvir o canto metálico dos pássaros de vidro. "Eu espero vocês aqui", o Escritor disse. Os dois irmãos então, sem qualquer medo, entraram no bosque. Além da lua, algumas estrelas começaram a salpicar o céu e os irmãos não demoraram a encontrar as pegadas do dragão. Era enorme, um dragão de tristeza, constatou Raquel por meio da pegada. Provavelmente, era um dos dragões que dormiam no fundo do riacho. Então, começaram a caçada. A noite escorregava pelas árvores, feito água flutuante e, vez ou outra, eram as estrelas que lhes apontavam a direção que deviam seguir. Encontraram uma clareira e sobre uma pedra, olhando para a lua, estava o dragão. Segurando com força o escudo, Gui se aproximou e pôde sentir a tristeza que o monstro exalava. Era tão profunda que fez seu coração revirar e naquele instante toda tristeza perdida dentro de si pôs-se diante de seus olhos. A voz ecoante do dragão dava força às tristezas e elas cresciam, feito ervas daninhas. O escudo escorregou da mão do garoto, ele tremia, o medo espalhava-se pelo seu corpo, começava a se descontrolar. Raquel vendo que seu irmão estava imerso numa tristeza quase indestrutível, aproximou-se dele. Lembrou-se exatamente das noites de tempestade e trovões. Ela nunca conseguia dormir nessas noites e sempre que tinha medo, seu irmão lhe estendia a mão. Suas camas ficavam uma ao lado da outra e até que a tempestade passasse, ficavam de mãos dadas para vencer os trovões. Assim, ela fez. Atravessou a onda de tristeza e segurou a mão do irmão. Um calor pequenino começou a brilhar em seu anel, a faísca de uma estrela. Gui abriu os olhos e envolvido pela coragem de sua irmã, enfrentou o dragão. Entretanto, não houve luta. O dragão se rendeu. Não havia nenhuma tristeza que pudesse vencer aquela coragem. Então, o dragão voltou para o fundo do riacho e os irmãos voltaram para onde haviam se separado do Escritor.

Contaram-lhe tudo e antes que o sol pudesse nascer, ele tomou o caminho do castelo, finalmente, havia cumprido a tarefa. Os irmãos voltaram para casa e quando se sentaram no sofá, voltaram a esperar por seus pais. Mais uma vez, arrumaram a mesa e esperaram. Dessa vez, não demoraram tanto a dormir, estavam exaustos e menos tristes. Naquela noite, seus pais também não voltaram. Acordaram com duas batidas desesperadas na porta. Era o Escritor outra vez. O rei não ficara satisfeito e lhe dera outra tarefa. Ele teria que capturar um dos pássaros de vidro. Mais uma vez ele pediu a ajuda dos irmãos, e Raquel, ainda desconfiada de que conhecia aquele homem de algum lugar, aceitou ajudá-lo. No entanto, Gui quis fazer um acordo. "Ajudaremos você, se nos der algo em troca". O Escritor ficou em silêncio. "Quero que traga nossos pais de volta." O silêncio continuou e o Escritor abriu um sorriso. "Estamos combinados", e apertou a mão do garoto. Assim, partiram em busca do pássaro.

Raquel sabia exatamente onde eles viviam e também como faria para apanhar um. Os pássaros de vidro são os seres mais medrosos que existem, então é preciso ganhar sua confiança. E confiança não é algo fácil de conquistar. Raquel guiou-os pelo caminho ao longo do riacho, andaram por quase uma hora. Aos poucos, a vegetação foi se transformando e, agora, havia árvores de folhas arroxeadas muito mais altas que as de qualquer outra parte do bosque. Deixaram o riacho e entraram no bosque violeta. O Escritor estava tenso, porque dessa vez, ele teria que ajudar. Raquel pediu para que andassem sorrateiramente, porque qualquer barulho poderia espantar os pássaros. Gui foi o primeiro a avistá-los. Havia um bando, dez ou doze, mas um deles estava separado. Era uma fêmea, disse Raquel. Então, era hora de colocar o plano em ação. O Escritor saiu de trás do arbusto e encarou o pássaro nos olhos. Havia visto um daqueles apenas uma vez. Eram animais impressionantes, parecia que sua existência estava sempre por um triz, tamanha a fragilidade e leveza de seus corpos. Se ficassem imóveis, tornavam-se invisíveis e qualquer luz que lhes tocava, tornava-se arco-íris. Continuou encarando o pássaro sem piscar, então o pássaro disse "mel". O escritor retrucou, "papel". O pássaro, "mel". O escritor, "quartel". Cuidadosamente, o Escritor foi se afastando e o pássaro vinha atrás dele. "Mel". "Carretel". "Mel". "Miguel". "Mel". "Anel". "Mel". "Pincel". "Mel". "Corcel". "Mel". "hotel". "Mel". "Aluguel". "Mel". "Carrossel". "Mel". "Gabriel" Enquanto ele continuasse retrucando, o pássaro lhe seguiria e foi assim que ele conseguiu levá-lo até o castelo. Enquanto ele seguia. "Mel". "Fiel". Gui e Raquel. "Mel". Voltaram para casa. Retomaram a espera, mas, dessa vez, tinham um pouco mais de confiança que seus pais voltariam. Não ficaram no sofá, foram para o quarto. Arrumaram suas camas e dormiram, de mãos dadas, sabiam que seus pais voltariam. Mas, naquela noite, eles não voltaram.

Antes de amanhecer, já estavam batendo na porta. Mais uma vez, era o Escritor. Estava aos prantos. "O rei disse que ainda não é o bastante, ele quer ouvir uma árvore cantora. Só assim, poderei voltar a ver a princesa". "E os nossos pais?", Gui perguntou. "Me ajudem mais uma vez e seus pais voltarão". "O senhor promete?". "Prometo!" então, decidiram ajudá-lo. Raquel foi quem planejou tudo. Precisavam atravessar o bosque até o lago dos peixes falantes. Assim fizeram. Estavam ansiosos para que tudo aquilo acabasse e pudessem reencontrar seus pais. Tamanha era a expectativa que não perceberam o longo caminho que percorreram. De longe já podiam ouvir o falatório dos peixes que comentavam tudo o que havia acontecido, tudo o que acontecia e o que ainda aconteceria. Tamparam os ouvidos, senão seriam esmagados por tantas palavras. Pararam na margem, Gui tirou a blusa e saltou. Logo que mergulhou, pôde ver os gatos marinhos e os peixes-estrelas, passou por eles com cuidado, precisava ir mais para o fundo. Viu as longas folhas das algas vermelhas e na ponta de uma delas uma fruta que parecia uma maçã, agarrou o fruto e voltou para a superfície. O Escritor estava quase explodindo por causa do burburinho dos peixes e Raquel andava de um lado para o outro. Gui saiu do lago, e imediatamente voltaram para casa. No caminho, Raquel explicou ao Escritor que ele teria que comer a fruta e plantar o caroço,d ele nasceria uma árvore cantora, mas seria preciso esperar que ela crescesse. O escritor voltou para o castelo e os irmãos para a casa. Dessa vez, os três esperariam.

Mesmo tendo certeza de que seus pais voltariam naquela noite, os irmãos adormeceram enquanto a semente germinava e uma árvore crescia. Nessa mesma noite, a princesa que esperou tantas noites pelo Escritor, teve pela primeira vez um sonho. Sonhou em morar longe daquela cidade. Sem escadas, asfaltos e lixo. Desejou poder casar-se com o Escritor e poder morar num lugar perto do céu. Quando a árvore cantora entoou sua primeira ópera, puderam se casar. Casaram-se e como presente de casamento ganharam, de uma senhora quase anã, uma casa numa colina. Não hesitaram em se mudar para lá. A princesa preparou uma cesta de sanduíches e no carro barulhento do Escritor subiram a estradinha sonâmbula. Afinal de contas, havia dois filhos esperando que seus pais voltassem para o jantar.





POSFÁCIO

Este é o primeiro conto de minha autoria que publico aqui. Espero que eu possa escrever e publicar muitos outros. O conto Colina foi escrito em meados de 2011, em uma época em que eu acreditava em meu talento para a literatura. Ele foi publicado pela primeira vez em uma rede social de compartilhamento de textos autorais chamada Recanto das Letras, em 22 de janeiro de 2011. Nesse site, Colina teve 62 leituras. Alguns depois, em 2017, publiquei o conto revisado no Wattpad, mas também ele não obteve muitas leituras (188 até o momento). Embora, Colina não tenha atraído a leitura de muitas pessoas, tenho um carinho especial por este conto. Ele traz um ar de inocência, de fantasia e  encantamento que eu tanto aprecio. Além disso, usei uma espécie de final cíclico, como se o próximo passo depois do final do conto fosse o seu próprio início.

Link para o conto no Recanto das Letras: Colina no Recanto das Letras

Link para o conto no Wattpad: Colina no Wattpad




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2 comentários:

  1. A sensação de estar novamente em contato com essa história é maravilhosa! Parabéns pela criatividade e sagacidade que teve ao escrevê-la!

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    1. Muito obrigado! Alegro-me por ter proporcionado essa releitura a você.

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