Chegou a hora de falar mais
profundamente sobre o livro que marcou meu reencontro com o realismo fantástico, Sombras
de Reis Barbudos, escrito pelo José J. Veiga. Eu havia feito um comentário
breve acerca do autor e da história desse livro no texto Lembra do Realismo Fantástico?, em que falo da minha relação com o movimento latino que tanto me
encanta, mas que havia sido deixado um pouco de lado por mim nos últimos
tempos. Como prometido naquele texto, agora, irei comentar mais
substancialmente sobre a história, destacar alguns pontos que são dignos de atenção especial e expor algumas reflexões que esse livro suscitou em mim.
A história do livro pode parecer
simples à primeira vista. Acompanhamos o jovem
Lucas, ou Lu para os mais íntimos, na empreitada de escrever as memórias dos
acontecimentos que levaram suas cidade de uma época de paz e felicidade a um
destino quase apocalíptico. A narrativa de Lu começa com a chegada
de seu tio Baltazar e ressalta como ela foi o primeiro passo para a modificação
completa não só da vida dos moradores de Taitara, mas também da estrutura física
e organização da própria cidade. Naquela época, ninguém imaginava que a
chegada de alguém tão ímpar (obrigado, Felipe) poderia acarretar tantos problemas para o povo da cidadezinha.
Baltazar, homem rico e moderno, com o intuito de trazer melhorias e
facilidades para a vida dos moradores de Taitara, fundou a Companhia Melhoramentos que, após um golpe que arrancou Baltazar do controle da instituição, se
transformaria na causadora de grande parte das desventuras narradas na
história.
Foram várias as
atrocidades a que o povo de Taitara foi submetido depois que Baltazar foi deposto da presidência da Companhia. Uma das mais significativas,
e que aparece ilustrada na capa da edição que li, é a construção de muros para
dificultar a circulação de pessoas pela cidade. Os muros foram construídos do
dia pra noite e por toda parte, no meio das ruas, nos morros, nas escadas, nas praças; confinando os
moradores em uma espécie de labirinto que precisava ser enfrentando todas vez
que precisavam ir à padaria, por exemplo. Depois dos muros, veio uma enxurrada
de outras proibições imbecis. As pessoas foram proibidas
de conversar na rua, de sorrirem, de observarem os urubus que invadiram a
cidade. Qual a finalidade de todas essas proibições? Ninguém era capaz de
responder e o que lhes restava era obedecer, pois a Companhia aplicava duros
castigos a quem desobedecesse suas ordens, ameaçavam, torturavam e davam sumiço em quem os incomodava. É impossível não traçar um
paralelo entre as decisões tomadas pela Companhia após o tal golpe e o que
ocorreu no Brasil após o golpe militar de
64. As proibições, a censura, as perseguições, os castigos, torturas e
assassinatos ocorridos no Brasil e na fictícia Taitara possuem semelhanças claras. Ler as proibições e represálias da
Companhia despertou em mim uma incredulidade da mesma espécie que sinto quando leio
sobre as crueldades que aconteceram durante o regime militar brasileiro. Se no
livro, uma obra ficcional, as barbaridades que foram impostas aos moradores de Taitara já são inescrupulosas, imaginar que várias pessoas reais viveram de fato
situações semelhantes (e até piores) é assustador.
Gostaria de destacar
dois pontos da história. O primeiro é o fato de ela ser contada a partir da perspectiva
de um narrador-protagonista com pouca idade (Lucas tem apenas 11 anos no início
da história). Isso nos possibilita refletir sobre a subjetividade como os
acontecimentos são narrados. Em toda a história, percebe-se a simplicidade e até mesmo a
ingenuidade na forma como Lucas enxerga os acontecimentos desastrosos. Acompanhamos sua
esperança inocente acerca dos tempos melhores possivelmente vindouros, pelos quais ele tanto aneia, e seu deslumbramento ou decepção frente aos elementos que destoam de sua vida humilde
na cidadezinha do interior (os elementos que destoam não são os elementos
insólitos e fantasiosos, porque esses já são intrínsecos a sua vida, mas a riqueza, o próprio tio Baltazar e o grande mágico
Uzk, por exemplo). O confronto entre a expectativa de Lucas e a implacável
realidade também é algo que a perspectiva do narrador-personagem nos revela ao longo
da história. É importante atentarmo-nos para dois momentos importantes em que há esse contraste. O primeiro é a chegada do tio Baltazar e, em segundo, a apresentação do mágico Uzk. Lucas imaginava que seu tio fosse um
homem bem apessoado, aventureiro, galante e que tivesse os dois braços, mas ele não era nada disso. O tio era
gordo, com o cabelo ralo e não
tinha o braço esquerdo. Aquilo decepcionou Lucas profundamente e o garoto cogitou até mesmo que seu tio tivesse amputado o próprio braço só para humilhá-lo diante de seus
amigos. Quanto ao mágico, foi um pouco
diferente. Embora a aparência do mágico tenha decepcionado Lucas e seus amigos, pois esperavam um homem jovem, alto e de olhos flamejantes, como nos cartazes
do show, e Uzk era baixo e barrigudo; o mágico surpreendeu a todos com sua
performance e conseguiu, depois da decepção gerada por sua aparência,
ultrapassar a expectativa inicial dos garotos.
O segundo ponto para
o qual chamo a atenção é a invasão de urubus, as tais cruzes horizontais que
nomeiam o quinto capítulo do livro. Eles aparecem discretamente, as
pessoas não sabem exatamente quando apareceram ou se sempre estiveram ali, e, ao
longo de parte da história, vão se aproximando e se multiplicando até invadirem a cidade.
No início, as pessoas os abominam, depois se interessam pelo comportamento deles
e, mais tarde, aceitam-nos dentro de suas próprias casas, como animais de estimação. Frequentemente,
urubus são associados a coisas ruins, devido a seus hábitos alimentares ou
mesmo por sua aparência, por isso, o povo de Taitara já dizia "urubu de vigília, luto na família; urubu no telhado, choro dobrado". Se os urubus
haviam chegado junto com a onda de atrocidades da Companhia, ninguém sabia
dizer, entretanto, à medida que a situação na cidade foi se agravando, o número
de urubus foi aumentando dia após dia, como se o mal estivesse se acumulando
sobre a cidade até que chegasse ao ponto de entrar nas casas e viver junto de seus moradores. Será isso um sinal de que eles aceitaram e aprenderam a
conviver com o mal em suas vidas? Seria sinal de que o mal que a Companhia
atraiu invadiu até mesmo suas casas? Apesar de possivelmente estarem
relacionados à Companhia, os urubus também foram vítimas das proibições. A
existência de urubus na cidade também fora proibida.
Por fim, digo que Sombras de Reis
Barbudos é um romance enigmático. Ele fala sobre uma fase lamentável da vida de alguns personagens, de uma cidade, mas também sobre o amadurecimento do narrador-protagonista. Encontramos vários
símbolos que se escondem nas camadas da história, encontramos nuances metamorfoseadas nas palavras diretas do autor. Em vários momentos, a história corre límpida e
simples, como se fosse sobre uma cidade infeliz qualquer, sobre pessoas desafortunadas
quaisquer, no entanto, há outros momentos em que é bastante visível o quanto do
mundo real, do nosso mundo e do mundo do autor está presente naquelas linhas, o
quanto do Brasil está ali. O insólito existe por si mesmo; está ali
apenas porque é, nasceu ali, mas, se você escolher, se você quiser encontrar algum sentindo
especial, algum sentido que é só seu, mas também do mundo, ele está lá. As verdades, e
elas são muitas, existem para quem busca, quer ou precisa enxergá-las. Elas
estão lá, a verdade da história de formação de um adolescente, das barbaridades
causadas pela ditadura da Companhia Melhoramentos, das pessoas que trouxeram o mau agouro
para dentro de suas casas ou dos homens que, de repente, começaram a voar. As
verdades podem ser diferentes, mas todas elas estão sob os olhares austeros dos
reis barbudos.
Título: Sombras de Reis Barbudos
Autor: José J. Veiga
País: Brasil
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 152
Ano: 2015
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