quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Nas Páginas: Ursula, muito obrigado


Morreu Ursula K. Le Guin. Foi impossível não me sentir triste com essa notícia. Primeiramente, tive contato com o trabalho de Ursula indiretamente por meio do da adaptação animada do estúdio Ghibli chamada no Brasil de Contos de Terramar (originalmente, Gedo Senki). Quando assisti à animação, não sabia exatamente quem era Le Guin, mas aquele universo, o do Ciclo de Terramar, já me encantou naquela primeira experiência (mesmo o filme não sendo tão bom assim e ter decepcionado a própria Le Guin). Aquilo representou o ponta pé inicial que fez com que eu buscasse as obras da autora algum tempo depois.


Não demorou para que eu descobrisse que ela é uma escritora pioneira e que havia se consagrado escrevendo ficção científica e fantasia, que suas obras são aclamadas em todo o mundo por serem inovadoras, pertinentes e imprescindíveis. Ela ganhou muitos prêmios, é admirada pelos maiores escritores de fantasia que existem (grupo do qual ela fazia parte). Descobri que Ursula K. Le Guin é incrível.


Tive meu segundo contato com Ursula, dessa vez diretamente com sua literatura Isso aconteceu quando ganhei de presente de aniversário O Feiticeiro de Terramar. O primeiro livro do Ciclo de Terramar havia sido republicado pela editora Arqueiro, em 2016. Assim que ganhei o livro, comecei a ler (em setembro de  2016). Nele, acompanhamos o início da história de Ged, como ele deixou sua vida simples em uma vila para se tornar um grande feiticeiro. Amei o livro, amei cada palavra dele. Aquele livro fez com que eu me sentisse como se quela história tivesse sido escrita sob encomenda para mim. Na época da leitura, escrevi um pequeno comentário para o Skoob, gostaria de reproduzi-lo aqui:

"O Feiticeiro de Terramar" é um livro delicioso. A escrita parece deslizar a história diante de nossos olhos, é tudo muito fluido e as palavras escorregam, como um riacho, elas fluem e nos encharcam com sua delicadeza e sua verdade. Embora seja simples, a narrativa consegue transmitir o equilíbrio da história. Nela, as palavras parecem ser ditas por uma voz macia e sábia, que nos conta pacientemente toda a história, escolhendo as exatas palavras para comporem a primeira aventura do Gavião. Terramar é um mundo vasto, que aos poucos, seguindo os passos de Ged, vai se revelando. As muitas ilhas são descritas cuidadosamente e seus moradores possuem características próprias que enriquecem cada lugarejo que conhecemos. A estadia de Ged em Roke, na escola de magia, é interessantíssima e rezei para que existisse um livro inteiro contando com muitos detalhes tudo o que se passou durante aqueles anos. Lá, junto dele, conhecemos a verdadeira magia de Terramar e ela é incrível. A forma como a magia é abordada é instigante, misteriosa e quase real. Naquele mundo, todos sabem da magia, todos conhecem magos, feiticeiros, bruxas, fazedores de chuva, mas ao mesmo tempo, ela é algo tão delicado, complexo e lindo que ao abraçar o mundo de Terramar, a magia se distância e apenas empresta seu poder aos homens. Nesse sentido, no de lidar com algo muito simbólico, os magos são como cantores de uma música que eles mal conhecem e o que lhes resta é apenas acompanhar a melodia que a magia toca. Uma melodia incerta, flexível, que se revela, mas nunca por completo, que sempre esconde mais mistérios, mais poderes, mais possibilidades. Em relação a trama, o livro não possui grandes reviravoltas, é linear e acompanha o amadurecimento de Ged desde sua infância até o momento em que ele precisa enfrentar um grande mal que ele mesmo trouxe para o mundo. Acredito que o tema da história é, sobretudo, sobre o fato de que ser completo e inteiro significa aceitar cada defeito e qualidade, é se enxergar falho, mas continuar perseverante. Então, ao acompanharmos Ged em sua jornada de auto-descoberta, nos apaixonamos por Terramar, pelo seu povo, pelos seus mitos e pela sua magia. E percebemos que essa poderia ser uma história sobre nós mesmos que, assim como Ged, ao buscarmos o mundo, acabamos nos encontrando e lá estamos inteiros.

Lembro-me com saudade dessa leitura e foi com esse livro que me apaixonei pelas história da Ursula K. Le Guin.


Em seguida, em novembro de  2016, li A Mão esquerda da Escuridão publicado pela editora Aleph em 2014. Eu e meu amigo Jeff lemos na mesma época e comentávamos a cada novo acontecimento da trama. A Mão Esquerda da Escuridão é diferente de O Feiticeiro de Terramar em vários níveis. É um livro complexo em sua proposta e em seus elementos. A história acompanha a missão diplomática de Genly, um humano, em um planeta frio habitado por seres que só apresentam características ligadas ao gênero em determinado período. Normalmente, nenhum habitante desse planeta tem características ou está vinculado a gênero algum. Lidar com isso é um grande obstáculo para Genly, pois ele está impregnado pela forma como a  Terra lida com os gêneros e como ser do gênero masculino ou feminino define grande parte da vida dos terráqueos. Como seria um mundo em que essas questões ligadas ao gênero não existem? A resposta dessa pergunta, apesar de não ser o cerne da história, ecoa por todo o livro. A trama é cheia de nuances, de pormenores e de fatos escondidos nas entrelinhas. Considero esse livro denso, apesar de curto, e de uma riqueza ambiciosa. É importante reconhecer que esse livro, além de várias outras questões, enfrentou o desafio de lidar com as fronteiras de gênero da língua, sobretudo em sua tradução para o português, ao lidar com seres que não pertencem e não se identificam com nenhum gênero.

Por ultimo, em  agosto de 2017, li As Tumbas de Atuan, o segundo volume do Ciclo de Terramar. Estava muito ansioso por essa leitura e aguardava  com muito entusiasmo a  publicação da editora Arqueiro. Nesse segundo volume, acompanhamos a história de Tenar que é escolhida como sacerdotisa de uma religião decadente. Ela é privada de sua família, de sua liberdade e até mesmo de seu nome. Ela passaria a se chamar Arha e comandaria a seita misteriosa de adoração aos Inonimados. Em determinado momento, a trajetória de Tenar se esbarra com a de Ged e, a partir daí, temos os dois juntos e é muito bom ver como O Gavião amadureceu. A história de Tenar é simples, mas carregada de significado e descobertas. Ela é uma heroína que rompeu com a forma como as protagonistas femininas costumavam ser retratadas em 1970, quando o livro foi publicado originalmente. Assim, acompanhamos a caminhada de Tenar para  se libertar da cegueira do fanatismo religioso e tomar frente de sua própria vida.

Para nossa sorte, ainda há muitos livros da Ursula para serem lidos. Inclusive, já tenho me esperando Despossuídos, publicado pela editora Aleph em 2017. Minhas experiências com a literatura da Le Guin estão longe de acabar, sinto que ficaremos cada vez mais próximos. Lamento muito a morte desse ícone da literatura e, sobretudo, por se tratar de uma escritora por quem tenho um carinho especial. Presto minha  homenagem a ela e reverencio as incríveis obras literárias com que ela nos presenteou. Ursula, muito obrigado.

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2 comentários:

  1. Do pouco que li dela, adorei! Úrsula tem um jeito tão único de escrever, tão dela, que talvez as pessoas não tenham compreendido muito bem. Eu mesmo senti uma estranheza de início, mas logo acostumei e compreendi a escrita! Vale sim muito a pena e espero ansioso os próximos lançamentos da autora aqui no Brasil.

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    1. Eu estou muito ansioso real!!! Quero muito os outros dois volumes do ciclo Terramar e, se possível, mais livros de ficção científica também. Quanto mais Ursula melhor.

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